domingo, 21 de março de 2010

Os cortes que aliviam a dor da alma

Por Maria Laura Neves

Machucar a pele para aquietar a mente. Assim os praticantes da automutilação definem o transtorno que os persegue. Eles se batem, se queimam, até quebram os ossos em momentos de raiva ou tristeza profunda. Aqui você vai ler o relato e os trechos do diário de uma jovem de 25 anos que dilacerava a pele quando o sofrimento interno era insuportável. Ela diz que não se mutila há um ano e três meses, mas ainda luta para superar a depressão



A artista plástica Beatriz*, 25 anos, poderia ser uma jovem comum, dessas que gostam de ir ao cinema, namorar e sonham em construir uma carreira. Mas por baixo das roupas, ela esconde um segredo: cicatrizes de várias formas e tamanhos. Profundas, rasas, algumas pequenas, outras nem tanto. As marcas na pele de Beatriz não existem por causa de um acidente, mas porque ela mesma as provocou. Até pouco tempo atrás, cortava-se com estiletes e facas de cozinha para aliviar a dor de viver. Em outras palavras, provocar dor física, rasgando a pele, deixava a alma momentaneamente calma. Dava prazer. Mas também vergonha -que, assim como as cicatrizes, ficou até hoje. Por isso ela não revela sua identidade. 'Sempre escondi de todos que eu me cortava. A vergonha era tanta que nunca fui ao pronto-socorro dar pontos nos cortes, por mais que soubesse que eles eram necessários', diz.

Beatriz começou a se automutilar na adolescência, aos 12 anos, quando ela se frustrou profundamente com uma nota baixa (D) em uma prova de inglês. Inconformada e com raiva de si mesma, começou a bater a cabeça na parede. Era hora do recreio e a sala estava vazia. Só parou quando a cabeça latejou. O galo roxo no meio da testa trouxe calma, alívio e tranquilidade. 'Fiquei decepcionada comigo mesma. Sempre fui muito perfeccionista, tinha quer ser a melhor em tudo. Na prova seguinte tirei A.' Beatriz descobriu, então, um remédio acessível e eficiente para estancar a dor: machucar o corpo. Daquele dia em diante, começou a se dar tapas, mordidas e socos nos braços e nas pernas todas as vezes em que ficava triste ou com raiva. Dez anos mais tarde, no auge de uma crise de depressão, começou a se cortar com arames, facas, lâminas e qualquer objeto afiado que estivesse ao seu alcance. Mutilou braços, pernas, tornozelos e mãos.

Há três anos, Beatriz faz sessões de terapia com uma psicóloga e toma remédios para superar a automutilação, um transtorno emocional antigo, mas pouco estudado pela ciência. Tornou-se mais conhecido nas últimas semanas, depois do episódio da advogada brasileira Paula Oliveira. Ela foi acusada pela polícia suí-ça de se automutilar para conseguir indenização do governo, alegando que os cortes foram feitos por neonazistas.

Os automutilados se batem, se cortam, se queimam e até quebram os ossos quando não conseguem lidar com a angústia, a tristeza, a raiva e outros sentimentos difíceis de suportar. Eles não querem pôr fim à própria vida com os cortes. No início, desejam apenas se punir, mesmo que inconscientemente. O primeiro machucado quase sempre acontece por impulso. Muitos dão socos nas paredes, furam as mãos com a ponta do compasso, da lapiseira, com a lâmina do estilete ou um caco de vidro durante um acesso de raiva. Depois de machucados, dizem que se sentem aliviados. A dor física ameniza a emocional. Lesionar-se intencionalmente acaba se tornando a saída para os momentos dolorosos, um vício, como drogas ou álcool.



'Uma hora o arame deixou de satisfazer. Passei para o estilete. Depois gilete'
No Brasil não existem números oficiais da quantidade de pessoas que se machucam para alivar dores psíquicas. Só no Orkut existem mais de 20 comunidades relacionadas ao assunto. As maiores têm cerca de 600 participantes. Lá, pode-se ler relatos macabros. Em um deles, um participante que se diz gay afirma ter cortado o pênis por não lidar bem com a homossexualidade. 'Cortei o que me incomoda', escreve. No site YouTube, também há vídeos sobre o transtorno, muitos deles feitos por adolescentes que exaltam a automutilação.

Nos Estados Unidos, os estudos são mais avançados. Uma pesquisa publicada em 2006 mostrou que 17% dos jovens entre 18 e 24 anos em uma universidade americana já haviam se cortado intencionalmente uma vez na vida. E 75% deles levaram a prática adiante, sem a intenção de se suicidar. Wendy Lader, presidente da clínica americana S.A.F.E. Alternatives, especializada no tratamento do transtorno, diz que apesar da falta de estatísticas, percebe um crescimento no número de pacientes. 'Em 22 anos de trabalho já tratamos três mil pessoas. Nos últimos anos passamos a ser procurados por indivíduos comuns, médicos e educadores do mundo todo interessados em mais informações. A maioria conhece o problema porque alguém próximo se machuca e logo depois nos procura.'

No Brasil, a maioria dos automutilados ainda está desamparada. O único centro de terapia por aqui é o Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso, ligado ao Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo, que trata vários transtornos psiquiátricos, entre eles a automutilação, onde Beatriz faz terapia. 'Antes de conhecer o HC, fui a três psiquiatras que ficaram assustados com o meu problema e não sabiam o que fazer', diz. 'Saí desolada de uma consulta porque o melhor profissional que visitamos mostrou despreparo e me perguntou qual remédio deveria receitar', diz Joana*, mãe de Beatriz.

A origem do transtorno ainda é confusa para os especialistas. Uma parte dos estudiosos defende a ideia de que a autolesão é, sim, uma doença em si. Acreditam na hipótese de que os cortes liberariam mais endorfina em algumas pessoas do que em outras. Quando a substância age no cérebro, provoca sensação de bem-estar que diminui a ansiedade e a tristeza. É dessa maneira que a mutilação acaba se tornando um vício. A outra parte dos especialistas acredita que a automutilação é um sintoma de doenças emocionais, como a depressão. 'Geralmente, está associada a outros transtornos como a dependência química', diz a psiquiatra Jackeline Giusti, responsável pelo ambulatório do HC. 'A maioria das pessoas que se mutila tem dificuldade de lidar com a vida sentimental. Algumas foram abusadas sexual ou fisicamente na infância. E metade delas sofre de algum distúrbio alimentar', diz Wendy, da S.A.F.E.

Fonte:
http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML1696682-1740,00.html

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